Mutações induzidas em células germinativas podem levar a problemas de fertilidade ou doenças genéticas hereditárias, enquanto aquelas provocadas em células somáticas levam a diferentes efeitos deletérios como câncer, problemas de aprendizado, infertilidade, etc. Consequentemente, a identificação de substâncias químicas capazes de induzir mutações, chamadas de agentes genotóxicos, tornou-se um componente essencial na avaliação de segurança de substâncias e proteção à saúde humana.
Figura 1. Representação esquemática do Teste Salmonella/microssoma (Teste de Ames). (Fonte: HIMRI et al., 2018).
MUTAÇÕES EM CÉLULAS SOMÁTICAS OU GERMINATIVAS PODEM CAUSAR CÂNCER, PROBLEMAS DE APRENDIZADO, INFERTILIDADE ENTRE OUTROS.
As mutações podem ocorrer como mutações cromossômicas, que são grandes deleções ou rearranjos de DNA, como quebras ou rearranjos cromossômicos, ou como ganho ou perda de cromossomos inteiros, e mutações gênicas pontuais, nas quais apenas uma única base nitrogenada do DNA é modificada ou uma ou poucas bases são inseridas ou excluídas. As mutações gênicas pontuais são a causa de muitas doenças genéticas humanas e existem evidências substanciais que mutações pontuais em oncogenes e genes supressores de tumor de células somáticas estão envolvidas na formação de tumores em humanos.
O ensaio de mutação reversa bacteriana (Salmonella/microssoma - Teste de Ames) foi desenvolvido por Bruce Ames e colaboradores em 1973, na Universidade de Berkeley, Califórnia. Desde que foi desenvolvido, o Teste de Ames é o teste de genotoxicidade de curto prazo in vitro mais utilizado no mundo para avaliação de agentes causadores de mutações gênicas pontuais. Tem, até hoje, um papel central na toxicologia genética como um componente primário na geração de dados de mutagenicidade para avaliação de segurança de uma variedade de substâncias químicas, como por exemplo agrotóxicos, aditivos alimentares, medicamentos e suas impurezas, cosméticos, produtos para a saúde, e, principalmente como triagem da genotoxicidade de novas moléculas em estágios iniciais desenvolvimento. O Teste de Ames faz parte da bateria de testes padrão para avaliação da segurança de vários tipos de substâncias normalmente exigida pelas principais agências reguladoras do mundo como EMA, FDA, ANVISA, agências do Canadá, Japão, Austrália entre outras.
O teste Salmonella/microssoma também tem sido largamente utilizado para a detecção de mutágenos em amostras ambientais como a água (fluviais, efluentes industriais), ar e emissões de combustão, contribuindo para a identificação de compostos químicos mutagênicos nestas amostras. Com base na teoria da mutação somática da carcinogênese, quando um produto químico é determinado como mutagênico no teste de Ames, ele também pode ser um agente cancerígeno. Consequentemente, as agências reguladoras da Europa, EUA e Brasil (IBAMA) utilizam também o Teste de Ames como uma das exigências no controle da poluição ambiental.
O TESTE DE AMES FAZ PARTE DA BATERIA DE TESTES PADRÃO PARA AVALIAÇÃO DA SEGURANÇA DE VÁRIOS TIPOS DE SUBSTÂNCIAS COMO AGROTÓXICOS, MEDICAMENTOS E SUAS IMPUREZAS, COSMÉTICOS, PRODUTOS PARA A SAÚDE, ADITIVOS ALIMENTARES, AMOSTRAS AMBIENTAIS ETC.
O teste de Salmonella/microssoma (Figura 1) é realizado em linhagens de Salmonella typhymurium com mutações pré-existentes no operon do gene histidina que deixam a bactéria auxotrófica, isto é, incapaz de sintetizar histidina. Este aminoácido é necessário para seu crescimento e, portanto, se ela não pode produzi-lo precisa absorvê-lo do ambiente (meio de cultura, por exemplo) para poder crescer. Quando cultivada em meio de cultura sem histidina em sua composição, que servem como fonte externa do aminoácido, fica impossibilitada de crescer e formar colônias. Se a bactéria sofre uma mutação que causa a reversão para a prototrofia para histidina (capacidade de sintetizar histidina), esta indica a restauração da função do gene. A bactéria restaurada (chamada de “revertente” no jargão de laboratório) passa a sintetizar histidina e, consequentemente, a crescer em meio de cultura sem histidina e formar colônias. Quando o número de colônias revertentes crescidas em placas com o tratamento com a substância teste é maior que o número de colônias nas placas do controle negativo (sem substância teste) a substância é considerada positiva. Isto falando simplificadamente, pois cada linhagem tem seu parâmetro de reversão específico, os quais devem ser levados em consideração na leitura dos resultados. Assim, o Teste de Ames está fundamentado na determinação do número de células bacterianas revertentes (que sofreram mutação) por esse motivo, o teste é frequentemente referido como como um "ensaio de reversão".
O Guia OECD 471 - Ensaio de Mutação Reversa em Bactéria (OECD, 2020) recomenda o uso de um conjunto de linhagens de Salmonella typhimurium para a avaliação do potencial mutagênico de substâncias, sendo TA100, TA1535 (para detectar mutagênicos que induzem substituições de pares de bases), TA1537 ou TA97 ou TA97a, TA98 (para detectar mutagênicos que levam a deslocamentos de quadros de leitura, inserções, deleções), e Escherichia coli WP2 uvrA ou E. coli WP2 uvrA (pKM101) ou S. typhimurium TA102 (para detectar mutágenos indutores de danos oxidativos). Uma resposta positiva no Teste de Ames leva à presunção de que o produto químico é genotóxico e tem potencial para ser cancerígeno. As substâncias são consideradas “Ames negativo” quando resultados para todas as linhagens do conjunto de linhagens recomendado pelo guia OECD mostrarem resultados negativos, tanto na presença quanto na ausência de uma fonte exógena de ativação metabólica (fração microssomal S9).
A adequação dos procedimentos técnicos, ao longo do tempo, incluiu na bateria de ensaio controles negativos (solventes utilizados para a solubilização das amostras) e positivos, em função da característica de cada linhagem e a escolha de uma faixa de concentração da substância teste que não produza citotoxicidade às linhagens. Também, novas linhagens foram construídas para aumentar a sensibilidade do ensaio. Foram feitos esforços para a padronização do protocolo de realização do ensaio, incluindo a preparação de S9 Mix, verificação rotineira das linhagens testadoras quanto à estabilidade fisiológica (taxa de mutação espontânea) e uma apropriada avaliação estatística dos resultados.
Nos últimos anos, com o aumento de número de dados e correlações dos resultados do Teste de Ames em uma ampla gama de produtos químicos com outros ensaios, foi observada uma redução na sensibilidade e especificidade do ensaio quando comparadas com os indicados nos anos 1980. Entretanto, as análises mostraram que a um resultado positivo no Teste de Ames apresenta uma predição de carcinogenicidade de 70 a 90 %. Assim, os dados recentes mostraram que a previsibilidade, especificidade, reprodutibilidade e sensibilidade do ensaio garantem o Teste de Ames como uma excelente ferramenta atual para identificação de substâncias que causam mutação gênica.
ANÁLISES RECENTES MOSTRARAM QUE O TESTE DE AMES APRESENTA PREDIÇÃO DE 70 – 90 % PARA CARCINOGENICIDADE IN VIVO.
A avaliação de genotoxicidade in vitro deve incluir, além de mutagenicidade gênica, mutagenicidade em células de mamíferos para danos cromossômicos e aneuploidia. Os ensaios de Micronúcleos, Aberrações Cromossômicas e/ou Mutações Gênicas em células de mamífero in vitro são exemplos deste tipo de avaliação. Destes, o mais utilizado atualmente é o ensaio de Micronúcleos, que detecta danos cromossômicos, incluindo quebras cromossômicas e aneuploidia. Em sua versão in vitro, atende à filosofia dos 3R de Redução, Refinamento e Substituição (em inglês, Reduction, Refinement, Replacement) e faz parte do conjunto de ensaios chamados Métodos Alternativos à Experimentação Animal. A associação do Teste de Ames e do Ensaio de Micronúcleos in vitro é muito utilizada para a avaliação de substâncias e têm sido considerada como importante ferramenta para a identificação de agentes carcinogênicos potenciais em roedores.
A ASSOCIAÇÃO ENTRE OS ENSAIOS AMES E DE MICRONÚCLEOS IN VITRO É A BATERIA BÁSICA DE ENSAIOS PARA DETECÇÃO DE GENOTOXICIDADE.
Hoje em dia, o Teste de Ames é utilizado por mais de 2000 laboratórios no mundo, e existem mais de 10.000 publicações internacionais abordando o uso do teste na avaliação de milhares de agentes químicos. Neste cenário, o ensaio de mutação reversa em bactéria - Teste de Ames, devido à sua simplicidade, custo-benefício, flexibilidade e grande banco de dados validado, continua sendo, em pleno século XXI, considerado um teste de triagem de central importância, representando o primeiro passo para avaliação da genotoxicidade, que revela a reatividade do DNA e contribui com a identificação de substâncias que podem produzir mutações gênicas por diferentes mecanismos.
Leituras recomendadas
AMES, B.N.; DURSTON, W.E.; YAMASAKI, E.; LEE, F.D. 1973. Carcinogens are mutagens: a simple test system combining liver homogenates for activation and bacteria for detection. Proc Natl Acad Sci USA 70:2281–2285.
MARON, D.M.; AMES, B.N. 1983. Revised methods for the Salmonella mutagenicity test. Mutat Res 113:173–215.
CLAXTON, L.D.; UMBUZEIRO, G.A.; DEMARINI, D.M. 2010. The Salmonella Mutagenicity Assay: The Stethoscope of Genetic Toxicology for the 21st. Environmental Health Perspectives. Volume 118 (11): 1515 – 1522.
KIRKLAND, D.; REEVE, L.; GATEHOUSE, D.; VANPARYS, P. 2011. A core in vitro genotoxicity battery comprising the Ames test plus the in vitro micronucleus test is sufficient to detect rodent carcinogens and in vivo genotoxins. Mutation Research, 721 (2011) 27–73.
KIRKLAND, D.; ZEIGER, E.; MADIA, F.; GOODERHAM, N.; KASPER, P.; LYNCH, A.; MORITA, T.; OUEDRAOGO, G.; MORTE, J.M.P.; PFUHLER, S.; ROGIERS, V.; SCHULZ, M.; THYBAUD, V.; BENTHEM, J.V.; VANPARYS, P.; WORTH, A.; CORVI, R. 2014. Can in vitro mammalian cell genotoxicity test results be used tocomplement positive results in the Ames test and help predictcarcinogenic or in vivo genotoxic activity? I. Reports of individualdatabases presented at an EURL ECVAM Workshop. Mutation Research, 775–776 (2014) 55–68.
HIMRI, I.; SABONI, A.; OUAHHOUD, S.; MOHAMMED, E.; LAHMASS, I.; KHOULATI, A.; SAALAOUI, E. 2018. Place of the genotoxicity in the ecotoxicology domain. SMETox, 1(1):10-17.
MORTELMANS, K. 2019. A perspective on the development of the Ames Salmonella/mammalian microsome mutagenicity assay. Mutat Res Gen Tox Em, 841 (2019) 14–16.
ZEIGER, E. 2019. The test that changed the world: The Ames test and the regulation of chemicals. Mutat Res Gen Tox Em, 841 (2019) 43–48.
MADIA, F.; KIRKLAND, D.B.; MORITAC, T.; WHITED, P.; ASTURIOLA, D.; CORVIA, R. 2020. EURL ECVAM Genotoxicity and Carcinogenicity Database of Substances Eliciting Negative Results in the Ames Test: Construction of the Database. Mutat Res Gen Tox En, 854–855:503199.
MORTELMANS, K.; ZEIGER, E. 2000. The Ames Salmonella/microsome mutagenicity assay Mutation Research 455:29–60.
OECD ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATIONAND DEVELOPMENT. 2020. GUIDELINE FOR TESTING OF CHEMICALS TEST. Test Guideline No. 471, Bacterial Reverse Mutation Test – 26 JUNE 2020.
Comments